Meu Sol

Eduarda Formiga
4 min readJun 1, 2021

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Ei, essa carta é pra você, meu Sol.

Passaram-se meses até que meus dedos esquecessem como discar o número do fixo da sua casa. Talvez não herdei sua coragem, — permito-me ser imperfeitamente corajosa mesclada com a covardia — mas ainda guardo a humildade que me ensinou, esta me provoca a admitir que sinto medo.

Medo de sentir a sua falta e estar errada. Medo de estar sofrendo demais, sofrendo pouco demais… Medo da vida que se esvai ao som do entardecer. Da angústia que se acolhe nos entremeios do fim.

Quando tento rememorar, a própria nostalgia massacra o tempo vivido. O pretérito continua a ocultar o pavor que se abriga nas lacunas do próprio sentir medo. Das lágrimas que se perdem no soar das vibrações, de sorrisos e da indiferença.

Logo eu tão medrosa?
De onde viria este sentimento tão arrasador?

Aceito o medo como uma reação, um sintoma. É a ansiedade do futuro que lhe impede de viver o presente. É a depressão do passado que não há alterações — quiçá reparações ou viagens no tempo.

Medo do ciclo da vida. Bem como o Sol que vem a se pôr e nascer, como a vida. Cíclica.

O dia ficava sem cor. Talvez a essência do colorir esvaiu em algum momento que sequer relembro. Senti-me sem cor, como quando o Sol descansa. Eu precisava da aquarela.

Mas faltava.

Onde encontrar a cor da vida? Aquela alegria de imaginar sem a preocupação constante de um amanhã sem cor? E todo o preto e branco da vida me deixava o gosto amargo da partida.

Hoje foi diferente.

Não imaginava que o dia terminaria assim, nem que começasse. Isso vale para 2020 num todo. Eu não fazia ideia sobre onde estava um ano atrás, como não quero ter previsões mirabolantes para o futuro. Mas as últimas 24h foram interessantes.

Cheguei em João Pessoa perto das 3h da manhã com Pedro, um homem resoluto que não tive como lhe apresentar, mas sei que seriam grandes amigos.

Eu tinha tanto medo de pisar por aqui, de me sentir estranha ao ver as avenidas ou não sentir nada. O sentir nada era pior que sentir tudo. Afinal, a dor da falta que faz é construída, revivida e tecida por mim mesma.

Perguntei a Pedro se ele queria participar de um “ritual” que faço toda vez que chego no Bessa: assistir ao Sol nascer. Já fica claro perto das 4h, mas ele vem sempre tímido.

Completou-se um ano sem ver o Mar, sem ter os lábios com gosto de sal. Um ano difícil pra tanta gente que se perdeu ou perdeu outros que já são muitos e muitos e muitos. Difícil que me sinto estranha de escrever sobre sensações e desejos estranhos.

Estava tão extasiada que sai a correr em direção à praia. Precisava daquelas nuances de verde-cinza-azul e toda a aquarela que me faltava.

Caí no cascalho e pela primeira vez em sei lá quantos anos, vi-me adulta com o joelho a sangrar. Assim como era enquanto criança, não doeu e continuei a correr. Senti a areia, o vento que me batia a cara, a sensação de que tudo era real e eu não precisava mais temer. Os chinelos foram se perdendo junto ao fôlego e eu continuava a correr até o vestido se molhar de sal.

Sentamos em completo silêncio, a melodia da maré já me era eficaz.
Fiquei fixada em observar o nascer que pouco importava a visão periférica do cão a latir ou dos pescadores que já estavam ali. O cansaço de uma noite-não-dormida não importava, como nada importava. Apenas estar.

Pedro chegou a duvidar que o Sol apareceria por causa das nuvens, “sensação de profundidade” — ele dizia.

Só me vinha a certeza de: “preciso escrever sobre!”. Eu precisava fixar na minha mente tudo que estava a pensar. Mas viver o momento era tão preciso quanto o eternizar na escrita. Sem a vivência tudo seria uma ficção bonita para uma crônica que ninguém quer ler. Que poucos terão a paciência, que eu pouco me importo se chegará aos ouvidos de gente.

Era sobre o Sol, sobre você. Sem fé, nem santo: você apareceu pra mim.

Fiquei a observar até os olhos começarem a doer de agonia, até que a fotossensibilidade me fizesse desviar os olhares e perdia-me, mais uma vez, no Mar.

Era sobre o Sol e o Mar.

Era sobre quem não está mais aqui, sobre mais um dia 28 e a necessidade constante de querer ser absolutamente qualquer coisa. Qualquer coisa que fizer sentido pra você.
Para mim, hoje completa um ano da partida e como sou burra (penso repetidamente!), você nunca foi embora, estava ali. O meu próprio Sol.

Eduarda Formiga é jornalista, escritora e curiosa.

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